UMA EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL
Em novembro de 2005, a Prefeitura Municipal de Parnamirim/RN realizou um interessante concurso para confecção de uma cartilha sobre o combate ao trabalho infantil. Os participantes não foram técnicos ou militantes dessa área, mas sim as crianças do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI - daquele município. O certame foi pensado após a constatação de que as crianças encontravam-se muito vulneráveis socialmente, devido à situação de exclusão social das suas famílias. Concluiu-se que aquelas crianças necessitavam de um resgate cultural e educacional para que elas pudessem ter sua identidade e a sua autoestima construídas, além de despertá-las para o espírito esportivo e o trabalho em equipe.
Comentário:
Na condição de uma das integrantes da comissão julgadora que examinou esse concurso, quero registrar as seguintes observações:
Pude observar a dificuldade imensa que teve o grupo de crianças de determinado núcleo, para criar um texto que fosse além de um relato da sua dura realidade de trabalhador sem infância. Esses sequer fizeram ilustrações na cartilha, limitando-se a escrever cartas-denúncias (sem esta intenção) sobre a negligência e crueza com que são tratados pela família, comunidade, sociedade e governos.
Impossível para essas crianças construírem qualquer coisa que não tenha como matéria prima sua limitada visão sobre o mundo e sobre a própria infância, cuja criatividade agora checada, foi aprisionada pelo trabalho.
A cartilha campeã, do Núcleo Vale do Sol, foi perfeita em tudo: teve a melhor capa, com o desenho de uma criança roçando, constando como título: Trabalho infantil “isso é coisa de adulto”.
A autora – Jéssica Emanuele - de nove anos de idade - descreveu as agruras do trabalhador infantil no campo (locus do maior contingente de crianças trabalhadoras no Brasil), numa revista em quadrinhos com desenhos que denotam talento para a comunicação. A autora desenhou até o acidente de trabalho sofrido com a foice por um menino cortador de cana, desnudando a falta de socorro do acidentado que sai em busca da mãe gritando que vai morrer, sendo levado por ela para o hospital e não pelo pai que o acompanhava no trabalho.
Foi dado destaque à indiferença do atendimento hospitalar, exigindo-se dinheiro e na sua falta, não atenderam a criança vitimada. A narração continua com a mãe buscando o governo, cuja agente expede a ordem de atendimento, concluindo a história com o encaminhamento da criança já medicada ao PETI, pela assistente social que autorizou o atendimento hospitalar.
A criança, feliz, conclui que finalmente poderá comer sem ter que trabalhar.
Esse exercício deveria ser copiado por todos os municípios do país. Ao examinarmos os textos e desenhos feitos por crianças que foram tiradas do mundo do trabalho, pudemos ver claramente a aflição dessas crianças, o que pensam sobre isso e não apenas aquelas impressões que todos têm sobre a "satisfação" delas por estarem ajudando em casa.
As cartilhas foram denúncias legítimas de uma infância explorada, seja por seus pais ou por empregadores inescrupulosos. Foi uma lição muito clara para mim e extremamente constrangedora, porque tive acesso a ela um dia depois que a OIT divulgou a notícia de que ainda passaríamos no mínimo dez anos sem solucionarmos esse triste problema social no Brasil.
Concluí que o PETI, que já foi diluído no Programa Bolsa-Família e recentemente no Programa Brasil Sem Miséria, apesar de tantas críticas que já sofreu, ainda é a referência para reedificar crianças que tiveram tolhida sua criatividade pelo trabalho.
Esse espaço, tenha o nome que tiver, precisa ser aprimorado e compensando com uma inundação de estímulos para recriar as etapas perdidas. Ou seja, a jornada ampliada (que hoje se chama Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, com a criação do Programa Bolsa-Família), tem que recuperar e nivelar o potencial das crianças oriundas do mercado de trabalho, a fim de que elas possam acompanhar a cabeça viajante das demais crianças sem experiência laboral, que freqüentam a escola.
Infelizmente, a previsão feita pela OIT na época desse certame se confirmou. O Brasil se comprometeu a erradicar apenas as suas Piores Formas de Trabalho Infantil até o ano de 2015, formas essas, indicadas no Decreto nº 6.481 de 2008. E somente em 2020, nosso país está comprometido com a erradicação de todas as formas de trabalho infantil.
O espaço lúdico para crianças inseridas nesses programas de geração de renda e de combate à pobreza precisa ser valorizado, se queremos de fato, cumprir tais compromissos perante a comunidade internacional.
Para vencer o provável caminho da exclusão, as crianças trabalhadoras precisam que todos entendam seus exemplos, seus receios, suas inseguranças e sentimento de pequenez diante das outras crianças que só estudaram. Nesse turno especial, já fortalecidas na sua autoestima e alimentadas, poderão dar sequência à sua jornada de cidadania, freqüentando a escola com as demais.
Assim, se sentirão incluídas no mundo escolar e não crianças com menos inteligência, como são ainda tratadas, sendo esta a maior razão da evasão da escola e não somente o cansaço, como se costuma crer.
Uma das autoras das cartilhas desenhou a si mesma com orelhas de burro na escola. A criança trabalhadora se torna realmente “menor”, porque seu crescimento físico e intelectual são tolhidos pelo trabalho e postos em destaque pelos “educadores deseducados”.
Em Jardim de Piranhas/RN, há anos atrás, quando o Promotor Público obrigou os pais a matricularem e acompanharem o rendimento escolar dos filhos retirados do trabalho, essa autoridade teve que determinar a contratação de um psicólogo pela prefeitura para auxiliar as crianças egressas do trabalho, as quais tinham ataques de pânico e vômitos, ao chegar a hora de ir à escola.
Voltando ao certame das cartilhas, verificamos que um número expressivo de crianças descreveu trabalhos em semáforos (flanelinhas e malabaristas), mostrando a vulnerabilidade de serem abordadas por motoristas inescrupulosos que prometiam levá-las para algo “legal” e levavam-nas para o trabalho em fábricas, descrito pelas crianças como escravidão.
Nos desenhos, elas gritavam em coro por socorro. As vias públicas, no seu ideário, representam o espaço de liberdade, porque ficam sob as vistas, embora grossas, de todos os passantes.
Mais de uma criança fez cartilha descrevendo o trabalho de carvoeiro (um deles só usou lápis preto em seus desenhos. Ficou bem patente a negritude do seu dia-a-dia). Um dos títulos de cartilha que enfocou carvoaria foi: “João em busca da liberdade”. A capa dessa cartilha era um desenho com grafite exibindo uma criança toda suja de carvão, com uma pá na mão, atravessando um portal, como se fora uma guarita de uma prisão.
Pensávamos que a exploração sexual não seria mencionada, mas o foi em duas cartilhas, dentre elas uma de cordel, na qual um menino falava de uma amiguinha que ia para os caminhões cheirar pó para vender o corpo e juntar dinheiro para ser modelo. Ou seja: para encarar a situação de ter um adulto no corpo de uma criança, precisava estar drogada.
Não houve uma única cartilha que abordasse o trabalho doméstico. Esse fato, para mim, só denotou a total inacessibilidade a essas crianças, que diferentemente das demais trabalhadoras, encontram-se encasteladas nas residências protegidas dos patrões domesticadores.
Muitas cartilhas mostraram a total vulnerabilidade da criança explorada. Na maioria das histórias havia sempre uma autoridade intervindo para libertá-la dos próprios pais. Um menino relata a sua história de espancamentos pelo pai que o obrigava a trabalhar e quando não trazia dinheiro para casa, dormia fora, como um cachorro. Estando ferido e sujo, não conseguia no dia seguinte vender os bolos porque as pessoas tinham nojo da sua figura. Voltava sem dinheiro, apanhava e dormia fora de novo. A cartilha dessa criança terminava com um final feliz (seu sonho, evidentemente): depois do PETI e da escola, ele se tornava médico e tratava as feridas do pai.
Esse salutar exercício de cidadania me deu novas forças para continuar sendo uma tenaz lutadora contra a exploração de crianças no trabalho.
Marinalva Cardoso Dantas
Coordenadora do FOCA/RN
Em novembro de 2005, a Prefeitura Municipal de Parnamirim/RN realizou um interessante concurso para confecção de uma cartilha sobre o combate ao trabalho infantil. Os participantes não foram técnicos ou militantes dessa área, mas sim as crianças do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI - daquele município. O certame foi pensado após a constatação de que as crianças encontravam-se muito vulneráveis socialmente, devido à situação de exclusão social das suas famílias. Concluiu-se que aquelas crianças necessitavam de um resgate cultural e educacional para que elas pudessem ter sua identidade e a sua autoestima construídas, além de despertá-las para o espírito esportivo e o trabalho em equipe.
Comentário:
Na condição de uma das integrantes da comissão julgadora que examinou esse concurso, quero registrar as seguintes observações:
Pude observar a dificuldade imensa que teve o grupo de crianças de determinado núcleo, para criar um texto que fosse além de um relato da sua dura realidade de trabalhador sem infância. Esses sequer fizeram ilustrações na cartilha, limitando-se a escrever cartas-denúncias (sem esta intenção) sobre a negligência e crueza com que são tratados pela família, comunidade, sociedade e governos.
Impossível para essas crianças construírem qualquer coisa que não tenha como matéria prima sua limitada visão sobre o mundo e sobre a própria infância, cuja criatividade agora checada, foi aprisionada pelo trabalho.
A cartilha campeã, do Núcleo Vale do Sol, foi perfeita em tudo: teve a melhor capa, com o desenho de uma criança roçando, constando como título: Trabalho infantil “isso é coisa de adulto”.
A autora – Jéssica Emanuele - de nove anos de idade - descreveu as agruras do trabalhador infantil no campo (locus do maior contingente de crianças trabalhadoras no Brasil), numa revista em quadrinhos com desenhos que denotam talento para a comunicação. A autora desenhou até o acidente de trabalho sofrido com a foice por um menino cortador de cana, desnudando a falta de socorro do acidentado que sai em busca da mãe gritando que vai morrer, sendo levado por ela para o hospital e não pelo pai que o acompanhava no trabalho.
Foi dado destaque à indiferença do atendimento hospitalar, exigindo-se dinheiro e na sua falta, não atenderam a criança vitimada. A narração continua com a mãe buscando o governo, cuja agente expede a ordem de atendimento, concluindo a história com o encaminhamento da criança já medicada ao PETI, pela assistente social que autorizou o atendimento hospitalar.
A criança, feliz, conclui que finalmente poderá comer sem ter que trabalhar.
Esse exercício deveria ser copiado por todos os municípios do país. Ao examinarmos os textos e desenhos feitos por crianças que foram tiradas do mundo do trabalho, pudemos ver claramente a aflição dessas crianças, o que pensam sobre isso e não apenas aquelas impressões que todos têm sobre a "satisfação" delas por estarem ajudando em casa.
As cartilhas foram denúncias legítimas de uma infância explorada, seja por seus pais ou por empregadores inescrupulosos. Foi uma lição muito clara para mim e extremamente constrangedora, porque tive acesso a ela um dia depois que a OIT divulgou a notícia de que ainda passaríamos no mínimo dez anos sem solucionarmos esse triste problema social no Brasil.
Concluí que o PETI, que já foi diluído no Programa Bolsa-Família e recentemente no Programa Brasil Sem Miséria, apesar de tantas críticas que já sofreu, ainda é a referência para reedificar crianças que tiveram tolhida sua criatividade pelo trabalho.
Esse espaço, tenha o nome que tiver, precisa ser aprimorado e compensando com uma inundação de estímulos para recriar as etapas perdidas. Ou seja, a jornada ampliada (que hoje se chama Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, com a criação do Programa Bolsa-Família), tem que recuperar e nivelar o potencial das crianças oriundas do mercado de trabalho, a fim de que elas possam acompanhar a cabeça viajante das demais crianças sem experiência laboral, que freqüentam a escola.
Infelizmente, a previsão feita pela OIT na época desse certame se confirmou. O Brasil se comprometeu a erradicar apenas as suas Piores Formas de Trabalho Infantil até o ano de 2015, formas essas, indicadas no Decreto nº 6.481 de 2008. E somente em 2020, nosso país está comprometido com a erradicação de todas as formas de trabalho infantil.
O espaço lúdico para crianças inseridas nesses programas de geração de renda e de combate à pobreza precisa ser valorizado, se queremos de fato, cumprir tais compromissos perante a comunidade internacional.
Para vencer o provável caminho da exclusão, as crianças trabalhadoras precisam que todos entendam seus exemplos, seus receios, suas inseguranças e sentimento de pequenez diante das outras crianças que só estudaram. Nesse turno especial, já fortalecidas na sua autoestima e alimentadas, poderão dar sequência à sua jornada de cidadania, freqüentando a escola com as demais.
Assim, se sentirão incluídas no mundo escolar e não crianças com menos inteligência, como são ainda tratadas, sendo esta a maior razão da evasão da escola e não somente o cansaço, como se costuma crer.
Uma das autoras das cartilhas desenhou a si mesma com orelhas de burro na escola. A criança trabalhadora se torna realmente “menor”, porque seu crescimento físico e intelectual são tolhidos pelo trabalho e postos em destaque pelos “educadores deseducados”.
Em Jardim de Piranhas/RN, há anos atrás, quando o Promotor Público obrigou os pais a matricularem e acompanharem o rendimento escolar dos filhos retirados do trabalho, essa autoridade teve que determinar a contratação de um psicólogo pela prefeitura para auxiliar as crianças egressas do trabalho, as quais tinham ataques de pânico e vômitos, ao chegar a hora de ir à escola.
Voltando ao certame das cartilhas, verificamos que um número expressivo de crianças descreveu trabalhos em semáforos (flanelinhas e malabaristas), mostrando a vulnerabilidade de serem abordadas por motoristas inescrupulosos que prometiam levá-las para algo “legal” e levavam-nas para o trabalho em fábricas, descrito pelas crianças como escravidão.
Nos desenhos, elas gritavam em coro por socorro. As vias públicas, no seu ideário, representam o espaço de liberdade, porque ficam sob as vistas, embora grossas, de todos os passantes.
Mais de uma criança fez cartilha descrevendo o trabalho de carvoeiro (um deles só usou lápis preto em seus desenhos. Ficou bem patente a negritude do seu dia-a-dia). Um dos títulos de cartilha que enfocou carvoaria foi: “João em busca da liberdade”. A capa dessa cartilha era um desenho com grafite exibindo uma criança toda suja de carvão, com uma pá na mão, atravessando um portal, como se fora uma guarita de uma prisão.
Pensávamos que a exploração sexual não seria mencionada, mas o foi em duas cartilhas, dentre elas uma de cordel, na qual um menino falava de uma amiguinha que ia para os caminhões cheirar pó para vender o corpo e juntar dinheiro para ser modelo. Ou seja: para encarar a situação de ter um adulto no corpo de uma criança, precisava estar drogada.
Não houve uma única cartilha que abordasse o trabalho doméstico. Esse fato, para mim, só denotou a total inacessibilidade a essas crianças, que diferentemente das demais trabalhadoras, encontram-se encasteladas nas residências protegidas dos patrões domesticadores.
Muitas cartilhas mostraram a total vulnerabilidade da criança explorada. Na maioria das histórias havia sempre uma autoridade intervindo para libertá-la dos próprios pais. Um menino relata a sua história de espancamentos pelo pai que o obrigava a trabalhar e quando não trazia dinheiro para casa, dormia fora, como um cachorro. Estando ferido e sujo, não conseguia no dia seguinte vender os bolos porque as pessoas tinham nojo da sua figura. Voltava sem dinheiro, apanhava e dormia fora de novo. A cartilha dessa criança terminava com um final feliz (seu sonho, evidentemente): depois do PETI e da escola, ele se tornava médico e tratava as feridas do pai.
Esse salutar exercício de cidadania me deu novas forças para continuar sendo uma tenaz lutadora contra a exploração de crianças no trabalho.
Marinalva Cardoso Dantas
Coordenadora do FOCA/RN
São anos de experiência no combate ao trabalho infantil e ainda consigo me indignar com a situação! Triste realidade e excelente abordagem , como todas feitas pela sensibilidade da Marinalva!
ResponderExcluirO que posso dizer a uma mestra do combate ao trabalho infantil, como é vc Regina, reconhecida por todos os seus colegas e parceiros nacionais? O pior de todos os relatos dessas crianças, foi aquele em que o menino diz que sua amiguinha faz sexo por dinheiro com caminhoneiros e para conseguir aguentar o corpo de um adulto dentro do seu pequenino corpo, tinha que ingerir drogas. São duas invasões odiosas ao corpo dessa criança e uma devastação completa da sua alma, da sua mente, da sua existência. Essa é a pior dentre as piores formas de trabalho infantil.
ExcluirNós, os adultos que discutimos o trabalho infantil, seja contra ou a favor, dificilmente paramos para ouvir das crianças como se sentem em relação ao trabalho. Esse relato nos mostra que o mundo dessas crianças é muito pior do que se possa imaginar
ResponderExcluirTem razão Inge. Como nos disse uma psicóloga, a criança que vive essas violências, precisam se abstrair dos sentimentos, senão não suportariam o sofrimento, então ao serem eventualmente ouvidas por nós, não demonstram suas angústias. Algumas até dizem que gostam do que fazem, porque não querem pensar sobre isso. É sobrevivência, mas, ao ter um espaço lúdico, onde podem falar como crianças e não como trabalhadores, elas fazem contato com elas próprias e aí manifestam seu repúdio e sua dor.
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