quarta-feira, 18 de abril de 2012



Abril vermelho.


Ontem, vendo as notícias sobre a chacina de Eldorado dos Carajás, tão marcante no cenário nacional, relembrei meu batismo em terras do Pará, no ano de 1996, ainda no começo do grupo móvel, quando pus meus pés naquele cenário sinistro. Integrava a equipe da colega Claudia Márcia.

Logo ao chegar à Marabá fiquei impressionada com o outdoor que dava as boas vindas aos visitantes. Dizia: Bem vindo a Marabá. Abaixo, quem dava as boas vindas era a Funerária São Francisco. Geralmente, as boas vindas são dadas por hotéis, restaurantes ou outro estabelecimento comercial. Pensei então:

- Meu Deus, eu não quero me hospedar eternamente nesta cidade!

Em seguida, fomos para Xinguara, passando por Eldorado dos Carajás. O comboio parou na estrada e então descobri que estávamos no local onde foram chacinados naquele mesmo ano, os 19 sem terras.

Os policiais nos explicaram como aconteceu, como os trabalhadores ficaram encurralados e mortos. Visão horrível, que só piorava minha impressão do outdoor. O chão era fofo e quente. Meu passeio macabro no meio daquelas cruzes, cheias de velas derretidas, me fizeram entender que estávamos partindo de ameaças veladas para o risco concreto de morte.

O Pará cheirava a morte e impunidade. Tomamos conhecimento sobre a lista negra dos marcados para morrer. Entre eles, o emblemático Padre francês da CPT de Xinguara, Frei Henry de Roziers, que tive a honra de conhecer, amenizando a péssima impressão que me causou aquele estado.

Após entender o panorama da violência do campo - coisa que não fazia parte da minha consciência sobre o Brasil - saímos de madrugada, ainda muito escuro, para flagrarmos um gato perigosíssimo, que batia nos trabalhadores com “panadas” (forma de surrar com o lado plano do facão, que deriva da expressão “planada”).

Teríamos que abordá-lo durante seu sono, porque estava no meio de um desmatamento e portava armas. Ao entrarmos na trilha para o alojamento do gato, fomos surpreendidos por uma densa fumaça de uma queimada. Estava nervosa com a situação de estarmos vulneráveis no campo do inimigo, que poderia ver muito bem nossos faróis, enquanto ele estava encoberto pela escuridão. Foi o momento de maior temor em toda a minha vida móvel.

Paramos à margem da estrada, para estirarmos as pernas, já que as distâncias no Pará são sempre enormes. Faltou fôlego. A fumaça da queimada estava baixa, e o nosso colega médico nos disse:

- Entrem todos nos carros, porque se faltar oxigênio, não vou poder fazer nada por vocês.

E assim, ficamos sozinhos dentro dos carros, no meio da escuridão, enquanto os policiais federais subiram numa camioneta e foram fazer a abordagem ao tal “gato”. Ouvimos os gritos da madeira queimando, uma coisa fantasmagórica.

Quando entramos no acampamento, já amanhecia o dia e vimos a devastação da terra queimada, assim como as indecentes condições dos trabalhadores. Uma coisa incrível.
Alguns trabalhadores dormiam a céu aberto, em redes penduradas nos galhos de árvores ainda de pé. Havia um auxiliar do “gato”, que apelidaram de vampiro, porque tinha apenas os dois caninos. Sua figura combinava com aquele cenário tétrico.

Depois de todos os procedimentos, fomos emitir as Carteiras de Trabalho de todo o grupo e só então, descobrimos que havíamos esquecido a cola para afixar as fotos nas CTPS (foi levado um fotógrafo). Impasse. Sem as fotos coladas e carimbadas com nossa assinatura, não seriam válidas.

Vendo nossa aflição, um trabalhador nos disse:

- Se quiserem, nós fazemos a cola pra vocês.

- Como? Perguntamos.

- Nós fazemos uma cola que prega até solado de bota.

Aceitamos e fomos ver a incrível fórmula: uma bacia com gasolina e uma embalagem de isopor. Quebraram os pedaços da embalagem dentro da bacia e mexeram com um graveto. Pronto! O combustível engoliu em segundos o isopor e ganhamos uma cola cremosa. Assim, as CTPS foram formalizadas, embora o cheiro forte da gasolina tenha nos causado dores de cabeça.

Foi um batismo de fogo, literalmente, minha primeira visita ao Pará. Em um único dia, rodamos mais de 70 quilômetros sem vermos o sol, encoberto que estava por nuvens de fumaça.


Tempo das incontroladas queimadas, dos gigantescos crimes ambientais e dos perversos crimes contra os direitos humanos.

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