quarta-feira, 14 de março de 2012

EM BUSCA DO PAI


Venho me perguntando há alguns anos (desde que passei a integrar os grupos de combate ao trabalho infantil e de combate ao trabalho escravo), o que faz os escravos contemporâneos que encontramos nas fazendas sob a modalidade da “servidão por dívida”, se submeterem a tratamento tão degradante, tão aviltante, que leva qualquer espécime da raça humana a tomar-se de indignação. O Professor José Martins, sociólogo da USP e “expert” da ONU em relações espúrias de trabalho, afirma que a escravidão é a forma extremada de desvalorização do trabalho, onde o trabalhador é reduzido à condição de objeto de uso precário e temporal.
Por que ao serem libertados pelo Grupo Móvel das indecentes dívidas e do jugo dos seus opressores/credores retornam sem resistência à rede escravista tecida pelos “gatos”?
Perguntava-me da mesma forma, por que as crianças trabalhadoras não se rebelam como as demais crianças o fazem quando são instadas a fazer algo que não querem? Por que recebem tarefas e responsabilidades acima da sua capacidade e simplesmente não se entregam à fantasia e ao descompromisso como qualquer criança?
Ontem, finalmente me deram uma resposta. Conversava num café com uma psicóloga que estuda as motivações psíquicas do ser humano para o trabalho e ela me forneceu a primeira pista para explicar esse “espírito de senzala” que em pleno século XXI teima em assombrar tanto os trabalhadores rurais quanto os Auditores Fiscais do Trabalho.
Esclarecedora a tese da psicóloga. Buscamos no trabalho, segundo a mesma, nada menos que o nosso pai ideal. Não o que temos, mas aquele que todos sonhamos ter: aquele que nos impõe limites, que nos ensina, nos sustenta, nos dá mesada, nos valoriza, nos prepara para a vida e nos garante um futuro decente.
Que dizer então daquele que nunca teve ou conheceu um pai, essa figura que completa o mais perfeito e equilibrado triângulo amoroso das relações humanas: pai, mãe e filho? Sua busca é muito mais frenética, pois precisa desesperadamente dessa figura, com todos os seus simbolismos. O pai/trabalho supre todas as carências que temos em relação ao nosso pai real, ou aquele que assumiu o papel de pai na nossa vida (o tio, o avô, o padrasto, o adotivo).
Os que tiveram a paternidade negada, então, sentem-se tão diminuídos, tão perdidos por não terem “merecido” um pai, que aceitam de bom grado o padrasto/trabalho, ainda que ele seja cruel e lhes faça sofrer. Que lhes importa? Afinal, têm um pai, como todo o mundo.
No caso dos escravos, analfabetos, inexistentes enquanto cidadãos, como não assimilar a figura do “gato” como padrasto? Se ele se torna insuportavelmente mau, o “enteado” foge e chama o pai ideal, defensor e protetor, para resgatá-lo juntamente com os seus irmãos.
A quem Atribuem essa função do pai-herói? À figura do Policial Federal, com o qual também confundem o Auditor Fiscal do Trabalho.O respeito e a admiração demonstrados são patentes. Se enchem de coragem e entregam todos os maus tratos que lhes foram impingidos, a esse pai que toma suas dores, os reconhece, lhes registra, lhes fornece o tão sonhado documento onde finalmente podem colocar o nome do seu verdadeiro pai (Os fiscais do grupo móvel fornecem as CTPS, inclusive aos que não possuam Registro de Nascimento, mediante o testemunho de dois outros fiscais, valendo a mesma por 90 dias, de acordo com o artigo 17 da CLT. Devido a CTPS, muitos são fotografados pela primeira vez na vida). É um verdadeiro nascimento civil, presenciado pelo “pai ideal”, o que para eles é mais emocionante. Sob as vistas desse pai, embarcam num ônibus, de volta para casa.
É na CTPS fornecida pela equipe móvel que está o bem mais precioso e buscado. Finalmente, seu pai está ali, naquele documento, nas suas mãos e na sua vida. Essa paternidade e essa cidadania provisória, levanta-lhes o moral. Um adolescente retirado de uma fazenda de Paragominas, no Estado do Pará, me disse, após ter a sua CTPS/Cidadão em mãos, que nas fazendas do Pará “quem não tem Registro de Nascimento vale menos que um cachorro”. Deve ser por isso mesmo que eles têm donos e não patrões. Deve ser por isso que nenhum escravo tem nome, só apelidos (Fogoió, Ceará, Piauí, Negão, etc), para que saibam que foram coisificados mesmo. Com que prazer nós os chamamos pelos seus verdadeiros nomes!
Não é à toa que no momento do retorno, reunimos todos eles para dizer-lhes que são gente, que são cidadãos, têm direitos e que nos importamos com o que lhes acontece.
Quando o pai ideal vai embora, por falta de opção muitos deles voltam à casa do padrasto, metendo-se novamente em encrencas. Nova fuga e eis que surge mais uma vez o pai protetor.
Quantas e tantas vezes faremos o papel de pai num país onde a paternidade irresponsável é a regra? Os colegas dos GECTIPA colocam as crianças trabalhadoras na escola, zelam pela sua saúde e segurança retirando-as do padrasto-trabalho e provocam sua inserção no programa (PETI) que lhes dá a “mesada” (bolsa). Com o convênio da SIT/SEAS, ainda supervisionam se o que está sendo oferecido às crianças é de boa qualidade (esporte, alimentação, cultura, etc). Pode não parecer nada, mas, ao cuidar da categoria mais vulnerável dos trabalhadores (a criança), o AFT está na verdade fazendo dois combates simultâneos: o do trabalho infantil e o do trabalho escravo. Os que não conseguiram ainda entender que o trabalho infantil é o elo que dá início à perversa cadeia da servidão por dívida, exatamente por manter uma oferta de mão-de-obra cativa (analfabetos, sem perspectivas, sem auto-estima), correm o risco de estarem um dia assumindo o papel de pai de escravos, hoje assumido pelos integrantes do Grupo Móvel, pois enquanto existirem floresta, pasto, algodoal, milharal, etc., lá estarão esses seres “inexistentes”, nos fazendo ver que se a CLT virar letra morta, para eles não tem nenhuma importância, pois estão ainda tentando entender uma tal de Lei Áurea.
Mas, não é só o pai ausente ou inexistente que é buscado no trabalho. O que foi companheiro e presente é igualmente procurado, ainda que essa presença esteja associada a cansaço e a muitas tarefas. No I Seminário Brasileiro - Crianças e Adolescentes Trabalhadores (março/2001), o mesmo Professor Martins afirmou que o trabalho infantil não é realmente necessário, mas os pais introduzem seus filhos precocemente no mercado, fazendo do seu trabalho uma escola familiar onde eles ensinam e repassam o que aprenderam. Essa prática torna os filhos seus companheiros.
O pai-trabalhador-analfabeto, apesar de ter tão poucos conhecimentos ensina absolutamente tudo o que sabe aos filhos. É o seu legado: o “kit sobrevivência”. Esses filhos, agradecidos, desenvolvem um comportamento solidário, para provar ao pai e a si próprios, que lhes foi passado o melhor. Além de se entregarem docilmente ao comando do patrão, também demonstram ter orgulho do aprendizado que seus pais lhes proporcionaram, possibilitando-lhes ser tão trabalhadores quanto eles “em vez de estarem na rua roubando ou cheirando cola”. Essa frase é velha conhecida dos AFT, mas somente agora observo o seu verdadeiro significado, que nada mais é que uma defesa dos pais e não do trabalho infantil.
Infelizmente, a criança trabalhadora aprende que o bom pai é o que dá tarefas. Logo, sob sua ótica, o patrão é um bom pai, a quem deve obediência e gratidão.
Curioso é que, embora nenhuma dessas crianças tenha lido o livro Polliana, sabem melhor que qualquer pessoa jogar o “jogo do contente”, único jogo, aliás, que conseguem dominar, por absoluta falta de prática em coisas lúdicas, tão essenciais à infância.


Marinalva Cardoso Dantas

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