domingo, 25 de março de 2012

Esta fábula ilustra como temos que lidar com pessoas inconvenientes, que chegam sem avisar, se metem a fazer o que não sabem e quando, apesar delas, os importunados conseguem realizar sua tarefa, elas ainda se vangloriam de terem sido as principais causas do sucesso.


A MOSCA E O BOI






Certo dia, um homem vinha em seu carro de boi e ao passar num lamaçal, o boi ficou atolado. Não conseguia sair do lugar.


O homem pediu ajuda aos gritos, então uma mosca ouviu e pensou: - vou ajudar esse homem! Voou para os chifres do boi e ficou fazendo força, hora empurrava os chifres, hora empurrava a cabeça, e voava e zumbia, para animar o bicho.


O boi, irritado com a mosca, sacudia a cabeça e abanava o rabo e o homem não conseguia segurar o animal para puxá-lo.


Soltava as rédeas para abanar a mosca.


A mosca então pensou: - vou ajudar o homem em vez do boi e pôs-se a puxar a cabeça do homem, suas mãos e o homem ficava enlouquecido com o zumbido e os pousos do inseto.


Chegaram outras pessoas e a mosca, da mesma forma, resolveu ajudá-los, dar-lhes força. As pessoas todas não conseguiam segurar o animal porque espanavam a irritante mosca.


Chamaram um trator. A mosca resolveu “ajudar” o tratorista. Finalmente, com a ajuda do trator, que demorou mais por causa da perturbação da mosca, conseguiram desatolar o boi.


Todos ficaram aliviados e seguiram sua vida, felizes por terem se livrado da inoportuna mosca.


E a mosca? Deitou-se exausta, num galho e disse: - estou morta de cansada, mas, graças a mim, aquele pobre boi saiu do atoleiro!

quinta-feira, 22 de março de 2012

Boi da Cara Preta



Boi da Cara Preta,
por Marinalva Dantas, auditora fiscal do trabalho e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador do RN

Cenário de um matadouro: Curral, bois, fezes, cordas, varas, marreta, facas, limas, machado, sangue, gritos, fumaça, fogo, urubus, cães, muitos homens, muitas crianças e adolescentes.

Cena 1 - Dentro de um curral que dá suporte ao matadouro, meninos batem com varas e cordas nos animais para que caminhem até o corredor da morte. Vacas prenhas, em instinto maternal, engancham seus chifres na cerca para não seguirem seu inevitável destino. Meninos batem na vaca com uma vara e ela resiste, até que um deles quebra com as mãos o rabo do animal ou enfiam-lhe a vara no ânus. Vencida pela dor, a vaca caminha. Recebe um golpe de marreta de ferro. Diferentemente dos bois, ajoelha-se e se levanta. Não pode morrer, tem um filhote na barriga – ela sabe. E, assim, são desferidas sucessivas marretadas, até que ela tomba, mas luta pela vida até seu sangue se esvair pela veia do pescoço, empoçando o chão do matadouro. Um adolescente pula sobre a virilha do animal para o sangue jorrar mais depressa – sequer tenho tempo para recobrar a respiração e outro animal é abatido.

Cena 2 - Um adolescente retira o couro do animal, as vísceras e retalha a sua carne. Ele me diz que bom mesmo é beber o sangue do boi ainda quente, com cachaça! Crianças descalças pisam no chão sanguinolento e seguem com baldes nas mãos, arrecadando pedaços de sebos, de pelancas e pedaços de carne que levarão para alimentar as suas famílias. Um menino espera ansioso pelo “fato”, como chamam o órgão que contém a bílis. O garoto fura o fato e o fel escorre em um balde, transportando-o para um tonel de cem litros. Um comprador mensal lhe pagará R$ 100,00 pelo líquido armazenado. A carne é pesada e levada por adolescentes para uma carroça que foi lavada por uma criança desde a madrugada ou para um caminhão. Esses veículos farão a distribuição para açougues e supermercados.

Cena 3 - O cenário agora é a Casa de Fato – local onde adultos e crianças cozinham as vísceras em caldeirões, com fogo a lenha, disseminando um forte cheiro de fezes cozidas. Ao longo do piso de cimento, vários montes de fezes e restos de comida retirados dos animais abatidos, tripas reviradas, patas aferventadas. Um adolescente mergulha as mãos dentro de um tonel repleto de fezes bovinas, lavando algumas peças de boi. Do lado de fora, cães e urubus se refestelam. Os cães ganham de presente um bezerro todo formado, que foi retirado do ventre de uma das vacas. O motivo de se abater uma vaca com um bezerro no ventre? Simples! A vaca estava doente, ia ser perdida mesmo e, depois, quem vai saber? O churrasco vai ser comido do mesmo jeito. Um menininho espera com seu carro de mão o resto dos restos para levar para a sua família.

Cena 4 - Em um galpão, ao lado da Casa de Fato, meninos estendem os couros frescos em um tanque, jogam sal por cima e pisoteiam descalços para compactar a salga. O odor de carniça é insuportável e alguns vermes fervilham sob um couro no chão.

Cena 5 - Amanhece o dia. Feira livre. A carne que vi sendo “produzida” é comprada pelos cidadãos daquele município e de outros próximos. Dezenas de meninos, conduzindo carrinhos de mão, transportam, por R$ 1,00 a “mercadoria” para as casas e carros dos compradores.

Cena 6 - Um matadouro moderno, construído e inaugurado há um ano, entregue pelo Governo do Estado e pelo Governo Federal, permanece fechado, repleto de teias de aranhas. O matadouro, de métodos medievais, por sua vez, continua em intensa atividade e as crianças de berços esplêndidos continuam sonhando com bois da cara preta. Já as crianças de berços não tão nobres assim, continuam encarando e matando outros bois. E é então que, no domingo, enquanto os abastados saboreiam os seus churrascos, os pobres engolem os seus sebos e pelancas.

Fecho a cortina.

Blog do Sakamoto - Cotidiano - Notícias

Blog do Sakamoto - Cotidiano - Notícias

quarta-feira, 21 de março de 2012



Quem se lembra daquela propaganda antiga que dizia assim:

O PRIMEIRO SOUTIEN A GENTE NUNCA ESQUECE!

Pois bem...

Há alguns anos atrás, estava na então Delegacia Regional do Trabalho na PB, hoje Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, quando ouvi, estarrecida, o relato dos colegas paraibanos sobre uma fiscalização que efetuaram numa fábrica, conhecida pela sua produção de lingerie.

O colega, médico do trabalho, nos deu detalhes acerca dos afazeres desenvolvidos pelas empregadas da dita empresa. Eram todas do sexo feminino e preferencialmente adolescentes.

Essa preferência se devia aos movimentos finos que precisavam ser feitos com os dedos para confeccionarem, cada uma, quatro mil lacinhos por dia para decorar os soutiens.


Esses lacinhos eram feitos com uma fita sintética, produzida a partir de derivados de petróleo e ao serem cortadas, desprendiam aerodispersóides praticamente invisíveis, que eram inalados pelas adolescentes trabalhadoras.
As pedrinhas imitando cristal, que prendiam os lacinhos aos soutiens, eram pregadas com ultrassom.

Gilvan nos revelou ter encontrado nas fichas médicas das empregadas a descrição de quadro de dor nos pulsos em 25% das adolescentes, cujos movimentos efetuados com os dedos, utilizando um padrão de metal, causavam-lhes tenossinovite.

A colega Raquel relatou que mandou retirar as adolescentes daquele trabalho, por ser insalubre, com proibição expressa para tal faixa etária, tendo lavrado o competente Auto de Infração.


Foram os colegas surpreendidos com a defesa do Auto de Infração, onde a empresa insistia em permanecer com as adolescentes em tal situação, alegando que lhes forneceriam Equipamento de Proteção Individual - EPI e que tal solução seria possível, conforme nova Portaria a esse respeito.

Como são rápidos em descobrir falhas e lacunas nas normas para continuarem explorando impunemente os jovens trabalhadores!

Isso não aconteceria nos dias atuais, pois o uso de EPI não pode ser utilizado como argumento para anular a insalubridade ou periculosidade, quando se trata de adolescentes.

As adolescentes continuaram trabalhando, naquela época, e literalmente caíram “no laço” da DORT, já se ressentindo das dores nos pulsos, tornando doloroso até o ato de desabotoar seu próprio soutien.

Imagino que já estejam hoje, na condição de adultas, sentindo os efeitos nefastos dos aerodispersóides expelidos quatro mil vezes por dia, invadindo seu peito e alojando-se nos seus pulmões.

Com certeza, essas meninas já sabem melhor que a modelo da famosa propaganda de soutiens,
que realmente, o primeiro soutien a gente nunca esquece, principalmente se você o tiver fabricado.


Marinalva Cardoso Dantas
Auditora Fiscal do Trabalho









terça-feira, 20 de março de 2012

Ontem, no dia do marceneiro, encontrei entre meus "guardados" essa peça belíssima que bem poderia estar no rol daqueles contidos no "vendo o que não se vê" onde olhos treinados pela vida enxergam o verdadeiro sentido de ocupar certos cargos. Ao salvar o artigo, contudo, o nome do autor ficou oculto, ao qual, peço minhas desculpas. Marinalva









Juiz nega Justiça Gratuita para garoto, mas desembargador reverte a decisão







É simplesmente emocionante a decisão de um desembargador do Tribunal de Justiça e São Paulo. Um garoto pobre, que perdeu o pai em um acidente de trânsito pediu ajuda da Justiça Gratuita, mas um juiz negou. A negativa por si só já comove, principalmente pela falta de humanidade. Só que, a decisão de um desembargador é ainda muito mais emocionante.




Desembargador José Luiz Palma Bisson




Decisão do desembargador José Luiz Palma Bisson, do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferida num Recurso de Agravo de Instrumento ajuizado contra despacho de um Magistrado da cidade de Marília (SP), que negou os benefícios da Justiça Gratuita a um menor, filho de um marceneiro que morreu depois de ser atropelado por uma motocicleta. O menor ajuizou uma ação de indenização contra o causador do acidente pedindo pensão de um salário mínimo mais danos morais decorrentes do falecimento do pai.




Por não ter condições financeiras para pagar custas do processo o menor pediu a gratuidade prevista na Lei 1060/50. O Juiz, no entanto, negou-lhe o direito dizendo não ter apresentado prova de pobreza e, também, por estar representado no processo por "advogado particular".




A decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a partir do voto do desembargador Palma Bisson é daquelas que merecem ser comentadas, guardadas e relidas diariamente por todos os que militam no Judiciário.




Transcrevo a íntegra do voto:




“É o relatório. Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.




Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.




Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.




O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.



Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.




Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.




Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos...
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.




Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.




É como marceneiro que voto.




JOSÉ LUIZ PALMA BISSON - Relator Sorteado

segunda-feira, 19 de março de 2012

Texto de Marcelo Canellas sobre trabalho escravo contemporâneo, digno de postagem





SILÊNCIO E TRABALHO ESCRAVO

A constituição brasileira os protege. E no entanto, à noite, em jejum, eles dormem em currais, dentro dos cochos empapados pela baba do gado que durante o dia se farta do sal comprado pelo patrão. Porque só fazendo do prato do boi do patrão o seu leito de dormir é que os escravos modernos podem descansar. O código penal os protege. E no entanto eles trabalham muitas vezes sob a mira de trabucos empunhados por jagunços que só obedecem à lei do patrão, cuja pena sumária se aplica a todos os que cometeram o crime de terem nascido pobres. A convenção mundial dos direitos humanos os protege. E no entanto só lhes é concedido o direito de contrair dívidas impagáveis que os amarram aos grilhões do compromisso imposto pela aritmética perversa que transforma os créditos dos trabalhadores em débitos a favor do patrão. A legislação trabalhista os protege. E no entanto os escravos modernos só vêem uma carteira de trabalho quando têm a sorte de serem libertados pela polícia federal e pelos auditores fiscais. E aí nem mesmo os mais rudimentares sentimentos de compaixão e comiseração os protegem porque a despeito de toda a pena que sentimos ao ver camponeses maltrapilhos sendo libertados da escravidão, eles continuam a ser recrutados a cada temporada de desmate, a cada época de roçar, a cada colheita de cana, num interminável círculo vicioso. Por que será que o direito formal não consegue se aproximar da vida cotidiana desses trabalhadores? Será porque os donos das fazendas que são tocadas a trabalho escravo chegam de avião, especulam na bolsa e só se manifestam na presença de seus advogados? Será porque os escravos modernos andam de pau-de-arara, nem sequer imaginam que estão sendo escravizados, nem nunca viram um rábula que fosse? Difícil aplicar a lei quando se tem, de um lado, a hiper-concentração de terras que temos e, de outro, a pobreza extrema que nos envergonha. É essa equação que rega as raízes culturais do escravismo. O explorador acha que é legítimo explorar, afinal, ele é o dono, ele é o chefe, ele é o patrão. Chegarmos a essa barbárie pré-capitalista é algo tão injustificável quanto fechar os olhos, quanto virarmos de costas, para, cinicamente, lamentarmos quando aparece uma nova denúncia de trabalho escravo. Sociedade omissa é sociedade conivente. Gritemos. Nunca se fez justiça social em silêncio.




MARCELO CANELLAS







Ao ver as fotos antigas de crianças trabalhando nos EUA, há mais de 70 anos atrás, não pude deixar de comparar com a situação atual no Brasil. Por muitos anos essas imagens dos pequenos gazeteiros foram vistas pela sociedade como algo muito positivo e aqui em Natal, víamos nas vias públicas, dezenas de pequenos jornaleiros, quase atropelando os carros, numa disputa pelos clientes. Numa primeira e bem sucedida ação do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da criança e de Proteção ao adolescente Trabalhador - FOCA, foi feito um Termo de Ajuste de Conduta com o MPT, com a parceria dos grandes jornais. Em homenagem a esses pequenos "noticiadores", posto o poema abaixo, que me foi enviado pela colega Valderez Monte, nos anos 90.


MANCHETE



Garoto sujo e magro que vende jornal
Vende também esse olhar triste.
Grita, qual fosse um anúncio
Que nunca soubestes ler:
O preço da tua fome,
Da tua orfandade!
Anuncia a manchete da infelicidade
Escrita em teu semblante
E que ninguém quer ver.
Garoto, muda esses gritos de todo dia:
- Matou o marido! O Nordeste em agonia!
Não cansa tua garganta assim
Que és tão pequenino
Para falar de tanta coisa deste mundo
Esquece essa letra de imprensa
Um instante,
Porque ela não gosta de ti
Fica distante da tua retina,
Mesmo quando a pronuncias.
Garoto amarelo e sujo, manchete nova!
Grita, infeliz, a tua dor!
E põe à prova
Que a manchete maior
É a que nunca anuncias.


(Autor desconhecido)


Relendo Montesquieu

Durante décadas, cometi um grande equívoco de interpretação, depois de ler o "Espírito das Leis", do consagrado Montesquieu, ou Charles-Louis de Secondatt, ou ainda, Charles de Montesquieu, o influente iluminista francês.

Sabia desde a faculdade de Direito, que Montesquieu havia influenciado as Constituições de muitos países pela sua visão humanitária. Como, humanitária???? (perguntava eu). Como pode ser humanitário um homem que duvida até que um negro tenha alma? E fiquei injuriada com Montesquieu, guardando essas impressões até 2004, quando o critiquei para o jornalista francês, Julien Farrugia.

Vergonha...

Ele me perguntou:

- De quem foi essa tradução? Esse tradutor com certeza não conhece o estilo de Montesquieu nem seu pensamento, porque limitou-se a fazer a interpretação literal do texto ( o mesmo que eu fiz).




Segundo Julien, que me acompanhava em uma ação do grupo móvel no Pará, os franceses sabem que Montesquieu tinha um estilo irônico, satírico e todos compreenderam a crítica dele a essa linha de pensamento racista. Assim, depois de discorrer brilhantemente que o homem é livre por natureza, tendo embasado seu pensamento muito bem, passou a dizer que o negro, este sim, era escravo por natureza, porque tinha o nariz muito achatado...e blá blá blá...

Essa forma de dizer tamanho absurdo era exatamente para ironizar o pensamento dos medíocres da época, que pensavam assim. Ao contrário do que ele dizia, quando discorria sobre a natureza livre do homem, com profundidade, não utilizou um argumento plausível que justificasse a escravização dos negros, para mostrar que simplesmente não existia.

Em vez de recriminar ou combater o pensamento dos soberbos europeus, ele expressou com veemência o que eles pensavam, pondo em destaque a sandice de tal posição.

A verdadeira argumentação nunca dita claramente pelos que apoiavam essa exploração ele revela somente ao final, dizendo: "Como os europeus poderiam cuidar de tantas terras nas Américas, se não escravizassem os africanos, uma vez que mataram todos os índios?” (e aqui ele denunciava algo mais odioso, mostrando como o 1º mundo, tão evoluído, era bem selvagem, desumano até, com os povos dos outros continentes).

Bem, como também estou me expressando de forma escrita - ou digitalizada - é possível que tenha deixado o leitor na mesma, pois faltaram as expressões faciais, a entonação, a paixão, que podem transformar até carinho em agressão, dependendo de como "se fala" qualquer coisa.

A língua escrita não traz a emoção, o verdadeiro espírito do texto e se for traduzido de outra língua, então... Mas, enfim, como ouvi de "viva voz" as explicações e vi o "aperreio" do francês por eu ter entendido errado Montesquieu, reli tudo e me convenci de que o pensador estava bem além da minha visão, limitada pelo tradutor e pelo meu orientador de então.


Marinalva Cardoso Dantas


Auditora Fiscal do trabalho

domingo, 18 de março de 2012

MULHER E CRIANÇA, UMA QUESTÃO INSEPARÁVEL.

A Convenção Das Nações Unidas Sobre Os Direitos Da Criança, adotada pela sua Assembléia Geral em 20.11.89, considera que "...A criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento".

Esse direito à proteção antes do parto, nos leva à indispensável proteção à maternidade.

Seguindo esse norte, a Declaração Mundial Sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança Nos Anos 90 estabeleceu como compromisso dos seus signatários (151 países, dentre os quais o Brasil), o fortalecimento do papel desempenhado pela mulher em geral, e a garantia de igualdade de direitos das mesmas, como forma de beneficiar as crianças do mundo inteiro, salientando que as meninas devem receber tratamento e oportunidades iguais às dos meninos, desde o nascimento. Os representantes desses países se comprometeram a trabalhar para fortalecer o papel e a condição da mulher, promovendo o planejamento familiar responsável, o espaçamento entre partos, o aleitamento materno e a maternidade sem riscos.

A mulher, de acordo com o instrumento em estudo, desempenha uma diversidade de papéis fundamentais ao bem-estar das crianças. O aprimoramento da condição da mulher e seu acesso equitativo à educação, à formação, ao crédito e a outros serviços auxiliares constituem uma valiosa contribuição ao desenvolvimento social e econômico de cada nação. E tem mais: os esforços para o aprimoramento da mulher e de seu papel no desenvolvimento devem começar com a menina. É necessário garantir a igualdade de oportunidades nos campos da saúde, da nutrição, da educação e de outros serviços básicos, para que possam desenvolver plenamente seu potencial.

Saúde, nutrição e educação são direitos inalienáveis e importantes para a sobrevivência e o bem-estar da mulher e representam aspectos determinantes da saúde e do bem-estar da criança na primeira infância.

A referida Declaração Mundial Sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança, estabeleceu ainda, como uma das ações preliminares para os signatários, a redução de 50%, no mínimo, na taxa de analfabetismo entre os adultos em relação a 1990, com ênfase na alfabetização das mulheres.

Não foi à toa que o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, no seu Título II - Dos Direitos Fundamentais - nos artigos 8º, 9º, e 10 do Capítulo I que trata do direito à vida e à saúde das crianças, dispôs especificamente sobre a proteção à gestante e à nutriz.

O artigo 9º traz uma disposição que deve ser observada com todo o cuidado pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, qual seja:

Art. 9º - O Poder Público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas à medida privativa de liberdade.

O artigo 396 da CLT já estabelecia como direito da mulher trabalhadora dois descansos especiais de 1/2 hora durante a jornada de trabalho, para amamentar o próprio filho, até que este complete seis meses de idade, podendo ser dilatado esse período, a critério da autoridade competente, quando o exigir a saúde do filho da empregada.

O artigo 400 da CLT estabelece ainda a obrigatoriedade da empresa de manter local adequado para que os filhos das suas empregadas possam ser guardados durante o período de amamentação.

O ECA, portanto, trouxe uma inovação, colocando o que era direito exclusivo da mulher trabalhadora, como direito da própria criança. Isso reforça a idéia de que a proteção à mulher empregada, quando se trata de maternidade, na verdade é uma proteção à raça humana e deve ser defendida por todos, independentemente de gênero, principalmente pelos Auditores-Fiscais do Trabalho.

Protegendo o filho da operária ainda no ventre, proibindo que a mesma trabalhe em locais prejudiciais, fica protegida não só à sua saúde como também a do feto. Note-se que antes mesmo de ser considerado pessoa, esse ser já vai ao trabalho no útero da própria mãe, sem a garantia de que esse primeiro Equipamento de Proteção Individual – EPI, lhe dará a devida proteção contra os agentes agressores.

De acordo com as condições de pobreza da sua família, aquela mesma criança protegida indiretamente pelos auditores quando protege sua mãe trabalhadora gestante, poderá estar sendo protegida diretamente cerca de sete anos mais tarde (idade na qual se costuma inserir crianças no mundo do trabalho), ao encaminhá-la à escola, afastando-a do trabalho até que atinja a idade mínima para tal (16 anos).

Não é sem razão que o capítulo da CLT que trata da Proteção ao Trabalho da Mulher venha antes do capítulo destinado à Proteção do Trabalhador do Menor (termo* ainda utilizado erroneamente no citado diploma legal), protegendo-se primeiro a maternidade.

A Constituição Federal/88 dedicou tratamento às mulheres trabalhadoras idêntico ao que dispensa aos homens, tendo inclusive o MTE editado uma Instrução Normativa que estabelecia procedimentos para os auditores a esse respeito. Afirmava essa Instrução, que a mulher trabalhadora fora equiparada pela CF ao homem adulto, não havendo mais nenhuma distinção legal em relação a gênero, salvo se menores de 18 anos, os quais gozam de proteção especial, independentemente do gênero, o mesmo ocorrendo se a mulher estiver em estado de gravidez, independentemente da idade.

Há que se entender que uma mulher que porta uma criança no seu ventre, se torna, na forma do trato trabalhista, tão especialmente protegida quanto os adolescentes trabalhadores.

As determinações da CLT relativas à mulher e ao adolescente trabalhadores sempre foram semelhantes, com algumas distinções apenas, ao se proteger com mais firmeza o adolescente, no que se refere a horário de trabalho e descansos, para garantia da escolarização.

A mulher foi aos poucos sendo colocada par a par com o homem no que se refere a direitos e deveres trabalhistas, mas, algumas medidas de proteção que dividiam com os adolescentes, hoje são garantidas apenas a esses últimos, como por exemplo, a proibição do trabalho noturno, e do trabalho extraordinário.

Não deixa de ser curioso o fato de que o legislador num determinado artigo tenha conferido uma proteção às mulheres que não é dada nem aos adolescentes, que biologicamente são mais frágeis, como é o caso do artigo 386 da CLT, que estabelece para as mulheres adultas e adolescentes (aqui incluídas porque mulheres) que trabalham aos domingos, um repouso dominical de 15 em 15 dias, enquanto os homens adultos e adolescentes só têm garantido o repouso aos domingos a cada sete semanas. O referido artigo não foi oficialmente revogado de imediato, gerando grandes controvérsias. Esse cuidado foi retirado posteriormente, através de ato do MTE, mas sustentou-se por pouco tempo. Hoje a mulher voltou a ter tal distinção no seu descanso dominical.

É interessante verificar que todas as convenções expedidas pelos órgãos da ONU colocam a mulher como peça fundamental das suas políticas. Assim tem feito a OMS - Organização Mundial da Saúde, o UNICEF, a UNESCO, a OIT e tantos outros. Até a Recomendação 192 referente à proibição e ação imediata para a eliminação das piores formas de trabalho infantil, recomenda que os programas para esse fim dispensem especial atenção, em primeiro lugar, às crianças menores (de qualquer sexo) e em segundo lugar às meninas. Ao referir-se ao trabalho oculto como alvo de atenção especial, afirma que as meninas estão particularmente expostas a riscos.

O Brasil caminhou bem em direção à proteção da mulher divulgando amplamente a Convenção 111 que trata da discriminação no emprego e na ocupação, com enfoque especial para a questão gênero. Foram criadas comissões nos Ministérios, em especial o Ministério do Trabalho e Emprego, para tratarem dessa questão.

A intenção do Brasil é tão evidente, que fez uma alteração substancial no capítulo da CLT que disciplina o trabalho da mulher, ampliando a sua proteção no que se refere à maternidade e deixando-a a salvo de constrangimentos como a revista pessoal, sendo assim considerada, a revista em sua bolsa de mão.

Houve, no entanto, um grande equívoco do MTE em relação às mulheres trabalhadoras ao editar a Instrução Normativa número 01/88, supra mencionada, a qual disciplinou a ação fiscal em face das disposições da então novíssima Constituição Federal/88. Seus autores lançaram os olhos sobre a mulher apenas sob o enfoque trabalhista, deixando de observar todo o cenário mundial e demais áreas que já estavam colocando a mulher como o ponto nevrálgico para se resolver as questões mais cruciais da humanidade, às portas da Era de Aquarius.

Num país com tanta paternidade irresponsável, com tantas mulheres chefiando famílias, é impossível trabalhar para o futuro das crianças, sem uma ação concomitante com suas mães.

Os programas de inserção social têm acertado, quando cadastram apenas as mães para serem as destinatárias das rendas, principalmente o PETI e o Bolsa-Família, reconhecendo na mulher, a fidúcia para administrar a economia familiar, reequilibrando a sociedade ao retirar seus filhos do nocivo trabalho infantil.

Marinalva Cardoso Dantas
Auditora Fiscal do Trabalho – Coordenadora do Fórum Estadual Para Erradicação do Trabalho da Criança e Proteção ao Adolescente Trabalhador - FOCA/RN;
* A terminologia correta é criança, até os 12 anos de idade incompletos e adolescente, dos 12 aos 18 anos incompletos.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Durante o episódio da captura e assassinato de Bin Laden, lembrei que logo após o atentado a ele atribuído, ainda em 2001, passei um momento inusitado com minha equipe de trabalho, que relatei naquela época, no texto que segue abaixo:



Linguagem cativa


Logo após o atentado de 11 de setembro de 2001, um grupo de trabalhadores foi aliciado no Maranhão para trabalhar na cata de raízes no Mato Grosso, numa das fazendas mais prósperas de soja.


Ao chegarmos na tal fazenda, em novembro do mesmo ano, guiados por um fugitivo, ficamos surpresos, quando um trabalhador me disse: - “Doutora, aquele homem que todo mundo tá procurando, trabalha aqui com nós (sic)”.


- Que homem? Perguntei eu, espantada.


- Bin Late, me disse ele (os trabalhadores vitimados pelo trabalho escravo são analfabetos na sua maioria e têm uma linguagem baseada na audição, assim, repetem o que entenderam ter ouvido).


Ao se referir ao “procurado”, ele me apontou um rapaz barbudo, com um cabelo à altura dos ombros. Aí eu entendi e não pude deixar de rir. Eles se referiam a Bin Laden, o temido terrrorista que supostamente comandou o atentado aos EUA no dia 11 de setembro (as pessoas sempre se referem ao atentado ao World Trade Center, esquecendo que o Pentágono também foi atingido e outra aeronave que tinha como destino a Casa Branca foi derrubada, matando várias outras vítimas).


Esse trabalhador aviltado foi jocosamente apelidado de Bin Late, graças à sua aparência similar ou análoga à do terrorista. Mas, assim como o crime do qual tratamos é descrito como “submeter trabalhadores à condição análoga à de escravo”, o vocabulário deles é também análogo ao que os letrados utilizam e os nomes dos trabalhadores são trocados por algo que os faça memorizá-los, já que a memória visual e auditiva deles se baseia em aspectos aparentes, associados a um som. Se esses trabalhadores já estivessem em cativeiro antes do atentado famoso, certamente o nome desse trabalhador seria lobisomem, como já encontramos e até vampiro, porque um trabalhador só tinha os dois dentes caninos.


O que poderia ser considerado depreciativo numa comunidade normal, nesse ambiente assim não o é, porque no meio de tantos Josés, Franciscos, Raimundos, há que se criar um diferencial para personalizá-los e dar-lhes distinção. Sobrenomes, além de serem difíceis de memorizar, lembram família, há tempos perdida e muitos não o possuem porque nunca receberam um, já que sequer existem de direito (não têm Registro Civil de Nascimento).


Embora as pessoas pensem: é um mundo cão, assim chamado por ser algo muito ruim (cão no sentido de demônio), para os escravos o cão (o cachorro), lhes lembra um mundo bom, pois do mesmo modo como acontece com as crianças, melhora o seu pequeno universo, por lhes trazer afetividade diante de tanta desumanidade. No caso dos escravos, o cão, além de ser “o melhor amigo”, fiel e afetuoso, é o inimigo natural do “gato”, o causador de todo o seu sofrimento.

Marinalva Cardoso Dantas

Jesus Alegria dos Homens Legendado ( Celtic Woman )

Desde criança tenho fascínio por essa música. Posso dizer que me sinto quase no céu quando a ouço. Magnífica criação de Bach.

quarta-feira, 14 de março de 2012

O texto EM BUSCA DO PAI, que inaugura meu blog, foi escrito há quase 10 anos. Não participo mais das operações de resgate desses degradados, mas continuo na linha de frente na luta contra o trabalho infantil, contra o tráfico de trabalhadores, contra o preconceito e a discriminação no trabalho e sobretudo, contra o assédio moral, lutas essas que têm ocupado minha consciência dia após dia.

O ideal

EM BUSCA DO PAI


Venho me perguntando há alguns anos (desde que passei a integrar os grupos de combate ao trabalho infantil e de combate ao trabalho escravo), o que faz os escravos contemporâneos que encontramos nas fazendas sob a modalidade da “servidão por dívida”, se submeterem a tratamento tão degradante, tão aviltante, que leva qualquer espécime da raça humana a tomar-se de indignação. O Professor José Martins, sociólogo da USP e “expert” da ONU em relações espúrias de trabalho, afirma que a escravidão é a forma extremada de desvalorização do trabalho, onde o trabalhador é reduzido à condição de objeto de uso precário e temporal.
Por que ao serem libertados pelo Grupo Móvel das indecentes dívidas e do jugo dos seus opressores/credores retornam sem resistência à rede escravista tecida pelos “gatos”?
Perguntava-me da mesma forma, por que as crianças trabalhadoras não se rebelam como as demais crianças o fazem quando são instadas a fazer algo que não querem? Por que recebem tarefas e responsabilidades acima da sua capacidade e simplesmente não se entregam à fantasia e ao descompromisso como qualquer criança?
Ontem, finalmente me deram uma resposta. Conversava num café com uma psicóloga que estuda as motivações psíquicas do ser humano para o trabalho e ela me forneceu a primeira pista para explicar esse “espírito de senzala” que em pleno século XXI teima em assombrar tanto os trabalhadores rurais quanto os Auditores Fiscais do Trabalho.
Esclarecedora a tese da psicóloga. Buscamos no trabalho, segundo a mesma, nada menos que o nosso pai ideal. Não o que temos, mas aquele que todos sonhamos ter: aquele que nos impõe limites, que nos ensina, nos sustenta, nos dá mesada, nos valoriza, nos prepara para a vida e nos garante um futuro decente.
Que dizer então daquele que nunca teve ou conheceu um pai, essa figura que completa o mais perfeito e equilibrado triângulo amoroso das relações humanas: pai, mãe e filho? Sua busca é muito mais frenética, pois precisa desesperadamente dessa figura, com todos os seus simbolismos. O pai/trabalho supre todas as carências que temos em relação ao nosso pai real, ou aquele que assumiu o papel de pai na nossa vida (o tio, o avô, o padrasto, o adotivo).
Os que tiveram a paternidade negada, então, sentem-se tão diminuídos, tão perdidos por não terem “merecido” um pai, que aceitam de bom grado o padrasto/trabalho, ainda que ele seja cruel e lhes faça sofrer. Que lhes importa? Afinal, têm um pai, como todo o mundo.
No caso dos escravos, analfabetos, inexistentes enquanto cidadãos, como não assimilar a figura do “gato” como padrasto? Se ele se torna insuportavelmente mau, o “enteado” foge e chama o pai ideal, defensor e protetor, para resgatá-lo juntamente com os seus irmãos.
A quem Atribuem essa função do pai-herói? À figura do Policial Federal, com o qual também confundem o Auditor Fiscal do Trabalho.O respeito e a admiração demonstrados são patentes. Se enchem de coragem e entregam todos os maus tratos que lhes foram impingidos, a esse pai que toma suas dores, os reconhece, lhes registra, lhes fornece o tão sonhado documento onde finalmente podem colocar o nome do seu verdadeiro pai (Os fiscais do grupo móvel fornecem as CTPS, inclusive aos que não possuam Registro de Nascimento, mediante o testemunho de dois outros fiscais, valendo a mesma por 90 dias, de acordo com o artigo 17 da CLT. Devido a CTPS, muitos são fotografados pela primeira vez na vida). É um verdadeiro nascimento civil, presenciado pelo “pai ideal”, o que para eles é mais emocionante. Sob as vistas desse pai, embarcam num ônibus, de volta para casa.
É na CTPS fornecida pela equipe móvel que está o bem mais precioso e buscado. Finalmente, seu pai está ali, naquele documento, nas suas mãos e na sua vida. Essa paternidade e essa cidadania provisória, levanta-lhes o moral. Um adolescente retirado de uma fazenda de Paragominas, no Estado do Pará, me disse, após ter a sua CTPS/Cidadão em mãos, que nas fazendas do Pará “quem não tem Registro de Nascimento vale menos que um cachorro”. Deve ser por isso mesmo que eles têm donos e não patrões. Deve ser por isso que nenhum escravo tem nome, só apelidos (Fogoió, Ceará, Piauí, Negão, etc), para que saibam que foram coisificados mesmo. Com que prazer nós os chamamos pelos seus verdadeiros nomes!
Não é à toa que no momento do retorno, reunimos todos eles para dizer-lhes que são gente, que são cidadãos, têm direitos e que nos importamos com o que lhes acontece.
Quando o pai ideal vai embora, por falta de opção muitos deles voltam à casa do padrasto, metendo-se novamente em encrencas. Nova fuga e eis que surge mais uma vez o pai protetor.
Quantas e tantas vezes faremos o papel de pai num país onde a paternidade irresponsável é a regra? Os colegas dos GECTIPA colocam as crianças trabalhadoras na escola, zelam pela sua saúde e segurança retirando-as do padrasto-trabalho e provocam sua inserção no programa (PETI) que lhes dá a “mesada” (bolsa). Com o convênio da SIT/SEAS, ainda supervisionam se o que está sendo oferecido às crianças é de boa qualidade (esporte, alimentação, cultura, etc). Pode não parecer nada, mas, ao cuidar da categoria mais vulnerável dos trabalhadores (a criança), o AFT está na verdade fazendo dois combates simultâneos: o do trabalho infantil e o do trabalho escravo. Os que não conseguiram ainda entender que o trabalho infantil é o elo que dá início à perversa cadeia da servidão por dívida, exatamente por manter uma oferta de mão-de-obra cativa (analfabetos, sem perspectivas, sem auto-estima), correm o risco de estarem um dia assumindo o papel de pai de escravos, hoje assumido pelos integrantes do Grupo Móvel, pois enquanto existirem floresta, pasto, algodoal, milharal, etc., lá estarão esses seres “inexistentes”, nos fazendo ver que se a CLT virar letra morta, para eles não tem nenhuma importância, pois estão ainda tentando entender uma tal de Lei Áurea.
Mas, não é só o pai ausente ou inexistente que é buscado no trabalho. O que foi companheiro e presente é igualmente procurado, ainda que essa presença esteja associada a cansaço e a muitas tarefas. No I Seminário Brasileiro - Crianças e Adolescentes Trabalhadores (março/2001), o mesmo Professor Martins afirmou que o trabalho infantil não é realmente necessário, mas os pais introduzem seus filhos precocemente no mercado, fazendo do seu trabalho uma escola familiar onde eles ensinam e repassam o que aprenderam. Essa prática torna os filhos seus companheiros.
O pai-trabalhador-analfabeto, apesar de ter tão poucos conhecimentos ensina absolutamente tudo o que sabe aos filhos. É o seu legado: o “kit sobrevivência”. Esses filhos, agradecidos, desenvolvem um comportamento solidário, para provar ao pai e a si próprios, que lhes foi passado o melhor. Além de se entregarem docilmente ao comando do patrão, também demonstram ter orgulho do aprendizado que seus pais lhes proporcionaram, possibilitando-lhes ser tão trabalhadores quanto eles “em vez de estarem na rua roubando ou cheirando cola”. Essa frase é velha conhecida dos AFT, mas somente agora observo o seu verdadeiro significado, que nada mais é que uma defesa dos pais e não do trabalho infantil.
Infelizmente, a criança trabalhadora aprende que o bom pai é o que dá tarefas. Logo, sob sua ótica, o patrão é um bom pai, a quem deve obediência e gratidão.
Curioso é que, embora nenhuma dessas crianças tenha lido o livro Polliana, sabem melhor que qualquer pessoa jogar o “jogo do contente”, único jogo, aliás, que conseguem dominar, por absoluta falta de prática em coisas lúdicas, tão essenciais à infância.


Marinalva Cardoso Dantas