Hoje, véspera do Natal, dia em que as crianças se tornam iguais em sonhos, como se tivessem um único pai, que as visitam e presenteiam, sejam elas moradoras de palácios, barracos, viadutos ou calçadas, quero falar de bola. Tá, tatu-bola também, afinal, ainda somos um país movido a futebol.
O símbolo da Copa 2014 é
um simpático tatu que se embola e vira uma bola. Sempre me pareceu um
menino-bola, com uma carinha sapeca e feliz, como ficam as carinhas de qualquer
criança diante de uma bola, o brinquedo mais simples e barato que se possa
comprar. Quem não pode nem comprar uma bola (situação de milhões de crianças no
nosso país), improvisa com uma meia, com papéis ou sacolas plásticas de
supermercados, mas sai correndo atrás daquele brinquedo mágico, que move pernas
e emoções pueris.
Fiquei imensamente
comovida com a história de vida de tantos meninos que são explorados em times
de futebol, alojados desumanamente, afastados da família, as quais, por serem
pobres, não podem visitá-los nas longínquas cidades dos grandes clubes. E
assim, alcançam a “maioridade” sem estudo, sem convivência familiar, submetidos
a pedófilos e, de repente, aos 19 anos de idade, o sonho de ser um craque da
bola se torna o pesadelo de se descobrir um fracassado aos 19 anos de idade. Um
drama terrível, para quem sonhou ser um Neymar, e retorna à sua cidade,
despreparado para qualquer emprego.
Mas, esse drama atinge uma
pequena parcela da população. A maioria das crianças pobres que não desfruta de
espaços lúdicos, que não tem acesso a jogos eletrônicos, que só trabalha, que
sua escola nada lhe ensina a não ser que pode cochilar sobre a mesa, ao som da
“aula de ninar” da professora, sonha com uma bola de verdade, só sua.
E eu tive acesso a um
sonho desses, quando abri uma singela cartinha dessas que são entregues nos
Correios, supondo as crianças que serão entregues a Papai Noel.
E aí está outra grande
perversidade de ser criança pobre. Quando a criança bem criada descobre que
Papai Noel não existe, fica decepcionada, mas nem tanto, porque sabe que ele é
bem íntimo seu e que pode pedir-lhe agora pessoalmente seu presente de Natal,
mas a criança que escreve aos Correios, vai simplesmente saber que ele não
existe e pronto.
Pois bem, minha missão de
“Papai Noel” deste ano, foi bem difícil, porque tive que decifrar o que o
menininho de sete anos de idade escreveu. Impossível. Ele é analfabeto. Está na
escola, e é analfabeto. Alguém do correio, felizmente, escreveu em clara
caligrafia o seu pedido: - Quero ganhar uma bola.
Jesus! Será que essa criança
trabalha? Quase certo que sim, já que aos cinco anos, nossa população pobre já
conhece a responsabilidade do trabalho. Será que sua professora já leu um
caderno dele? Essa criança não consegue elaborar um sonho maior do que uma
bola? Sua criatividade ou sua autoestima não lhe permite mais que isso? Será
que é tão despossuído que a bola é um requinte? Será que sabe que os trocados
que ganha no trabalho não bancariam algo além do preço de uma bola?
Lembrei de uma longínqua semana de Natal,
quando resgatávamos escravos de uma próspera fazenda no Pará e havia
entre os resgatados, um menino de 14 anos, analfabeto, tão alheado do mundo que
desconhecia seu sobrenome, sua data de nascimento, o nome da mãe e nunca
brincou. Ganhou, no momento em que recebia suas verbas, uma bola, envolta num
laço de fita, do jornalista Leonardo Sakamoto. Um presente de Natal, para um
menino que nem sabia o que era Natal, até aquele momento. Um presente que dizia
exatamente:
- Você é uma criança, um menino, vá brincar.
Neste Natal de hoje, o que
tenho vontade mesmo de fazer, é dar de presente a cada criança pobre, uma
professora particular, que vá alfabetizá-las em suas casas, porque as escolas
não estão cumprindo o papel de alfabetizar nossas crianças. Estou cansada de
entrevistar crianças alheadas, que desconhecem o alfabeto brasileiro, que não
sabem nada a não ser contar notas de dois e cinco Reais. E para minha
indignação, declaram estar na 5ª, 7ª série.
O discurso dos pais e dos
que usam os serviços das crianças: - Elas estão na escola, qual o problema de
trabalhar?
Pois lhes digo: o problema
é que o trabalho não está deixando que elas APRENDAM!!!!
Mas, já que estamos em
tempos de Herodes, quando crianças são assassinadas em plena escola, em país do
primeiro mundo, já estou com medo que os sabotadores da cidadania comecem a
dizer que é melhor estar trabalhando que na escola, porque não é segura e nem ensina
nada.
Vai ser assim por muito
tempo. Tudo vai ser usado para manter as crianças aprisionadas ao trabalho. Uma
espécie de pena prévia, uma caução por ser pobre. Fico pensando se todas as
minhas lutas estão sendo eficazes. Mas, de uma coisa eu tenho certeza: a grande
luta da humanidade deve ser contra as mentalidades herodianas, essas que matam
de várias formas a infância, em todos os países do mundo.